Destruir objetos, roer móveis, derrubar o que tem pela frente. Quem tem um cachorro em casa entende como esse comportamento é um dos sinais de que o companheiro quer atenção ou buscar alguma atividade para quebrar o tédio.
Foi a partir do comportamento bagunceiro da Mel, sua cachorra, que o fisioterapeuta Ricardo Padovan, de 43 anos, levou pela primeira vez sua amiga de quatro patas para uma corrida nas proximidades de sua casa no interior de São Paulo e conheceu o que é o canicross. Desde então, há seis anos, a prática se tornou um hábito de higiene mental para toda a família.
“Eu sabia que o meu cão precisava de mais atividade física, assim como eu, que precisava trabalhar meu sistema cardiorespiratório”, conta Padovan. “Descobri no decorrer dos anos a corrida como um momento de introspecção e de qualidade de vida. Meu cachorro pode se soltar, estar bem com ele mesmo e ficar mais tranquilo dentro de casa.”
O que é Canicross?
O canicross é uma corrida na natureza, em solo de terra e é sempre guiado com um cachorro. O animal sempre vai à frente, nunca é puxado pelo tutor. Ambos utilizam equipamentos específicos.
A prática ainda é pouco popular no Brasil, mas já ganhou relevância em outros países pela possibilidade de conduzir uma corrida em contato com a natureza na companhia do animal de estimação.
O esporte traz benefícios tanto para o tutor como para o animal, impulsionando resistência, preparo físico e habilidades corporais, além do impacto positivo na saúde mental.
No Reino Unido, onde a prática se difundiu, o canicross também é uma forma de socializar cachorros resgatados com seus donos para a criação de vínculos.
“Nos dias que eu me estresso, só quero chegar em casa, colocar meu tênis e ir extravasar, recuperar minha saúde mental. Meus cachorros também são assim… Eles me esperam ansiosos para eu entrar em casa, colocar a roupa de corrida e pegar a coleira; é um momento nosso”, compartilha o fisioterapeuta.
A veterinária Camila Paglione, pós-graduada em clínica médica e cirúrgica de pequenos animais e adestradora comportamentalista da Cão Cidadão, aponta que a corrida, desde a leve até a mais intensa, é benéfica para a maioria dos cachorros.
“Melhora a saúde mental do cão, prevenindo estresse e ansiedade, e gera uma sensação prazerosa e estimulante de praticar uma atividade física ao ar livre com seu tutor, melhorando o bem-estar”, afirma Paglione.
De acordo com ela, a corrida também ajuda na manutenção do peso ideal do pet, melhora do sistema cardiovascular e fortalecimento do sistema musculoesquelético dele. O acompanhamento de um veterinário é fundamental para evitar lesões e outros transtornos à saúde do cachorro.
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Motivação e equilíbrio mental
A relação de saúde mental e a corrida é relatada com benefícios para lidar com transtornos mentais como depressão e ansiedade. Estudos demonstram também o sentimento de superação a cada novo quilômetro conquistado.
Porém, foi em 2008 que a primeira pesquisa mostrou resultados significativos e evidência de que a corrida provoca uma onda de endorfina no cérebro associada a mudanças de humor.
A partir dessa pesquisa, abriram-se as portas para que a neurociência afirmasse a existência do bem-estar após atividade física, com efeitos específicos da corrida na região frontolímbica do cérebro, que envolve o processamento do humor e estados afetivos.
Para o preparador físico da Alice, Caio Komino, a adesão do cachorro tem efeitos positivos para a parte motivacional de quem está começando a construir o hábito de correr.
“O cachorro, além de ser uma companhia, é motivacional. Para ele, não tem tempo ruim; mesmo com o tempo fechado, ensolarado. Ele sempre estará pronto para acompanhar o dono”, explica.
Cuidados do humano antes da prática
Komino aponta que, apesar de parecer uma ação simples e de baixo custo, independentemente da idade, histórico de lesões e condições clínicas, é essencial passar por um profissional de saúde antes de começar a correr com o cachorro.
“Mesmo o jovem sem histórico de lesão precisa ter esse acompanhamento e um programa de transição de caminhadas para corrida. Em especial, aqueles que têm uma rotina inativa, que passam muito tempo sentados. O acompanhamento com um profissional vai entender o estado dos músculos, quadril, articulações e do sistema cardiovascular”, detalha o preparador físico.
A alimentação e os exercícios de fortalecimento como pilates, musculação e funcional, auxiliam no melhor desempenho e no aumento de qualidade de vida.
Além disso, a corrida na terra é diferente do asfalto. Por isso, o canicross também requer cuidados especiais de fortalecimento e preventivos para evitar lesões, aponta o preparador físico Caio Caio Komino.
“A tração [na terra] é diferente do asfalto. Quando a gente está correndo, bate o pé no chão e o solo devolve para o nosso corpo. Essa força é diferente e tem o adicional de obstáculos que influenciam no equilíbrio e no condicionamento físico e motor. Assim como no asfalto, é necessário fazer um programa de transição e acompanhamento físico.”
Cuidados com o cachorro antes de correr
A veterinária Camila Paglione ressalta que cães de raça braquiocefálica, como bulldog, pug e shih tzu, precisam de cuidados extras por terem histórico genético de dificuldade com a troca de calor por meio do sistema respiratório. Para eles, as caminhadas são as atividades físicas mais indicadas.
“A maioria dos animais saudáveis pode praticar corrida com seus tutores, inclusive os cães SRD (sem raça definida), porém sempre respeitando os limites e individualidade de cada animal”, ressalta.
A prática do canicross de longos percursos não é recomendada para cachorros que apresentam problemas de saúde crônicos, agudos ou com predisposição a doenças osteomusculares ou osteoarticulares, como o pastor alemão, mastiff e dogue alemão.
Sempre respeite ritmo e limite de cada um na corrida
Quando Ricardo Padovan começou a correr com a Mel, sua cachorra de pequeno porte, ele logo consultou um veterinário para fazer um acompanhamento da saúde, mas foi na prática que entendeu o limite dos dois.
“É uma relação de parceria muito forte. O cachorro tem o instinto de seguir em frente; quando ele cansa, é hora de parar. Assim como nós temos alguns dias que não estamos bem, eles também têm.”
Entendendo a limitação da Mel, Ricardo incluiu uma nova companheira para as longas jornadas: a dálmata Moela.
“Eu saio com os dois para correr, respeitando a limitação de cada um. A Moela corre desde 1 ano e ama, tem sua própria rotina de me esperar para correr, de chegar em casa e se atirar na piscina.”
A veterinária Camila Paglione explica que, além de levar o cachorro para o check-up e um exame físico, é necessário se atentar ao comportamento do animal e ser gentil com o início da prática.
“Após a liberação do veterinário, é importante iniciar gradativamente os exercícios, em horários com temperaturas mais amenas, respeitando o ritmo do cão.”
O respeito ao ritmo também vale para o tutor. O preparador físico da Alice Caio Komino alerta sobre a importância do momento de transição para quem está começando um programa de corrida.
“O processo é lento e individualizado, de acordo com a condição de saúde de cada um. Para uma pessoa sedentária, o ideal é começar com caminhadas e ir aumentando a cada três semanas o ritmo para moderado e consecutivamente para pequenos trotes, até chegar na corrida. Respeitando seu tempo e condicionamento físico”, recomenda.
Entre a corrida de final de semana e as competições
O canicross também conta com uma competição que reúne fãs e um regulamento rigoroso para proteger a saúde do cão e do tutor.
No Brasil, a Associação Brasileira de Canicross e Esportes Similares fomenta os eventos e faz recomendações para a prática da atividade.
Além do envolvimento gradual do tutor e do cão nas competições, o uso de equipamento específico para a prática é imprescindível para reduzir o choque e a tração da corrida entre dono e seu cão.
“Os cães usam um colete de tração (Running Harness) e o condutor, um cinto que se conecta à corda elástica. O cinto do condutor reduz o impacto na coluna lombar, direcionando o impacto para o quadril, e a cinta elástica reduz o choque no condutor e no cão enquanto ele traciona”, explica a veterinária.
O equipamento também pode ser utilizado para todos os tipos de corrida, não apenas competições.
Ao longo do processo de adaptação e das corridas, o cachorro também pode passar por um processo de adestramento para se sentir mais seguro, assim como preparado para as surpresas de uma corrida na natureza, como obstáculos e mudanças de rota.
Ricardo Padovan aderiu ao canicross, mas mantém a filosofia de que, apesar da competição, correr com o cachorro, seja na natureza ou no bairro onde mora, é mais do que uma atividade física. “É uma conexão dos meus cachorros, comigo e com a minha família. É uma construção de qualidade de vida.”
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