De dia, uma existência realista: há o trabalho, o trânsito, o café que cai na roupa, a pilha de documentos para revisar. À noite, a existência é outra: surreal, fora de lógica, cheia de impossíveis e sem pé nem cabeça.
Que atire a primeira pedra quem, nos sonhos, nunca encarnou os mais distintos personagens, fabulosos e estranhos, munidos de poderes ou ameaçados por perigos incalculáveis, enquanto que no travesseiro repousa uma cabeça muitas vezes anônima e ordinária.
Entre o fechar dos olhos e o adormecimento pleno, somos capazes de habitar dois mundos simultâneos enquanto sonhamos. Tão antigos quanto a civilização que lhes fornece o “roteiro”, os sonhos são encarregados de dizer do passado, do presente ou do futuro, a depender da cultura.
Intrigam os seres humanos em maior ou menor grau, conforme a disponibilidade para perguntar sobre suas mensagens.
Algumas delas podem informar ao sonhador que importantes questões da vida merecem atenção – às vezes, uma atenção que não pode mais esperar.
“Estava de noite, a rua estava vazia. Eles vieram atrás de mim. Eu comecei a correr e precisava gritar socorro para me salvar. Só assim eu iria me salvar. Eu abria a boca, fazia esforço e o grito não saía. Eu ia morrer. Me esforcei muito para gritar. Eu estava correndo. Até que eu acordei (de verdade) gritando ‘socorro’, e muito cansada, como se estivesse correndo. Fiquei cansada todo o dia.” (Raquel, 50 anos, São Paulo)
Esse sonho de Raquel (nome fictício) está presente no livro Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia (Editora Autêntica, 2021).
A publicação, organizada pelos psicanalistas Christian Dunker, Cláudia Perrone, Gilson Iannini, Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski, resulta de uma pesquisa nacional de coleta de cerca de 900 sonhos, realizada por quatro universidades: UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), USP (Universidade de São Paulo), UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Em sequência ao registro da produção onírica dos participantes, o projeto recolheu as interpretações feitas pelos sonhadores. Foram oferecidos atendimentos de escuta a quem estivesse em situação de sofrimento.
Ao interpretar o sonho em que não consegue gritar, Raquel disse aos pesquisadores que tem “vontade de colocar algo pra fora, não me prender”.
Ela relatou que sua vida era orientada por vários não-ditos, impostos desde cedo em sua família. Segundo os pesquisadores, “o sonho teria explicitado e evocado esta antiga relação com a interdição à palavra, questão com a qual ela adiava lidar. A partir da experiência onírica e da escuta, ela decide que é hora de falar e busca um analista com quem possa dizer dessa antiga relação com o silêncio, pois entende que é hora de atravessá-la”.
Em outras palavras, o sonho angustiante de Raquel, que literalmente a deixou sem palavras, ofereceu suporte à busca de ajuda profissional para lidar com os impedimentos de se expressar.
“Muitas vezes o sonho, nas imagens que articula, pode nomear o que está difícil de ser verbalizado e reconhecido pelo sujeito”, explica a psicóloga e psicanalista Rose Gurski, uma das organizadoras do estudo sobre os sonhos e professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia da UFRGS.
“Na pesquisa, vimos que quando os sonhadores contavam seus sonhos, não pareciam ter noção do sofrimento que suas narrativas carregavam. É como se o sonho nomeasse, com suas imagens e significações cifradas, a dor e expressões de si que não podem aparecer de outro modo”, completa, destacando também que o levantamento sobre a produção onírica é uma forma de tratamento do momento histórico em que vivemos.
Gurski fundamenta que nas situações críticas, em que há intenso desamparo e angústia, como é o caso da pandemia com suas massivas perdas coletivas, é possível que a função onírica seja mais convocada, uma vez que há uma estimulação excessiva do aparelho psíquico que extrapola as condições de elaboração do sujeito.
“Pensamos que os sonhos funcionam como uma espécie de proteção para o psiquismo. Isso porque o sonho tem justamente como uma de suas funções metabolizar aquilo que está indigesto para o sonhador – a dimensão traumática, que também pode ser chamada de ‘inominável’”, esclarece a psicóloga e psicanalista.
Um pesadelo recorrente em todas as noites foi o que levou um garoto de cinco anos a desenvolver um pavor de dormir. Mas foi também o que motivou a mãe a procurar psicoterapia para a criança.
As imagens e sons assustadores que o menino experimentava enquanto dormia foram dando lugar à difícil e sensível elaboração sobre a morte. Em linhas comoventes, o neurocientista Sidarta Ribeiro descreve, no seu livro O oráculo da noite (Companhia das Letras, 2019), como aqueles sonhos foram cruciais para que ele pudesse iniciar o processo de luto pela perda do pai, que, em um ataque cardíaco, se fora de forma tão precoce.
Do absurdo dos sonhos às vivências cotidianas
“O que quero relatar não é um sonho em si, mas uma sensação que tenho em muitos desses sonhos: sempre que estou prestes a tocar alguém ou alguma coisa, finalizar uma tarefa, passar de uma porta, é como se o chão sob meus pés entrasse em marcha à ré. Na verdade, é como se tudo estivesse acontecendo sobre um disco de vinil e quando estou prestes a fazer o que quero – abraçar, reatar, passar de uma porta, dar caminho, finalizar um desejo seja ele qual for – a radiola é ligada e eu fico presa no ‘quase’. E não adianta apressar o passo, tentar enganar o disco, porque a força oposta vai na mesma intensidade.” (Mércia, 40 anos, Bahia)
Os pesquisadores compartilham no livro que, ao interpretar o próprio sonho, Mércia (nome fictício) faz uma leitura de que ele demonstra a impotência que ela sente ao não poder fazer nada para que o disco siga adiante. “Ela não se sente agente, autora, da própria vida, e qualquer esforço nessa direção parece vão.”
Para Maíra (nome fictício), do Rio de Janeiro, um sonho que ela tivera a fez pensar “em como estou levando minha vida desde o ano passado: em movimento, mas sem destino”.
Relatos como o de Maíra, Mércia, Sidarta e Raquel ilustram que o mundo dos sonhos não é separado da vida em que estamos acordados, por mais que os elementos oníricos produzam estranhamento aos sonhadores.
“O sonho é o espaço em que as questões que estão em aberto voltam à tona: aquilo que marcou, que traumatizou, com que você não está satisfeito”, explica o psiquiatra e psicanalista Mario Eduardo Costa Pereira, professor associado do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
“Uma função muito importante do sonho é fazer o sujeito se reencontrar e se perguntar ‘Para que mesmo que eu estou fazendo isso?’ ‘Por que estou me matando tanto por isso?’ ‘Qual é o sentido disso, dos meus ideais, meus projetos?’ É como se o sujeito se ressintonizasse consigo mesmo para que a vida volte a fazer sentido”, completa Pereira, que é também autor do livro A erótica do sono (Editora Aller, 2021).
Essa produção de perguntas tão pessoais a partir dos sonhos demonstra o quanto nossa produção onírica tem um aspecto de “retorno da verdade da gente, daquilo que fica escondido atrás da realidade cotidiana”, como explica o professor da Unicamp.
“Uma das estratégias que a gente tem para não ter que entrar em contato com isso que é muito penoso é se lançar à prática da vida. A gente brinca dizendo ‘vai carpir um lote que passa’. O problema até passa naquela hora; mas, à noite, volta. Porque carpir um lote não muda nada se você se sente abandonado, não se sente realizado, sente que está fazendo o oposto daquilo que se desejava, não se autoriza a ir de fato atrás do que quer. Tem gente que precisa da realidade pra jamais ter contato consigo mesmo”, prossegue o psiquiatra.
A realidade, de fato, se impõe. “É claro que o mundo tem que funcionar, e a gente precisa fazer gestão das coisas práticas da vida. Mas esta é a cena, e a gente tem a outra cena, que era o que Freud chamava de inconsciente. No fundo, é a outra cena que dá o sentido para a cena: se você não tem contato com a outra cena, você pode até ter sucesso na cena, mas tem uma sensação de desconexão com você mesmo. O sonho permite a chance de um novo contato com a outra cena.”
Além de trazer para a consciência aspectos cruciais da vida do sonhador, o sonho permite consolidar memórias que estavam em aberto e estabelecer novas redes de ligação.
É o que acontece quando vamos dormir com um problema pendente de solução e acordamos com possíveis saídas para aquele quebra-cabeça.
“Aquilo que antes a gente só conseguia pensar de uma única maneira associativa começa a ter possibilidade de se associar de outras formas. Então, o sonho e o sono têm papel extremamente importante para a vida mental, psíquica, emocional e para a memória”, acrescenta o psiquiatra e psicanalista.
Sonhar, relatar e interpretar
Historicamente, é a sabedoria popular que supunha um significado oculto na produção onírica; daí nossas infindáveis tentativas de interpretação.
Sigmund Freud, neurologista que criou a Psicanálise, seguiu a mesma trilha de inquietação da opinião leiga e fez do enigma dos sonhos o motor de sua teoria sobre o funcionamento psíquico dos humanos.
Ao publicar o livro “A interpretação dos sonhos”, em 1900, ele apresentava a aplicação de uma técnica psicológica de interpretação que revelava que aquelas sofisticadas produções de linguagem eram uma formação psíquica dotada de sentido e que tinha relação com a vida acordada.
Se de um lado a formação do sonho implicava um trabalho de elaboração, o caminho inverso, da interpretação, produzia associações que conectavam os elementos oníricos, até então absurdos e ilógicos, a situações cotidianas e desejos inconscientes.
Diferentemente das tradições criptográfica ou simbólica, em que significados pré-determinados eram atribuídos por um outro ou pela cultura, Freud postulou que as “chaves” para interpretar os sonhos são subjetivas, isto é, as relações são particulares, tecidas pelas associações que cada sonhador vai fazendo entre os elementos do sonho e aquilo que vem à mente.
A partir da interpretação, o sentido informa ao sonhador questões e detalhes de sua vida que passaram despercebidos ou que foram desconsiderados, seja por não parecerem tão importantes ou por serem insuportavelmente relevantes.
O sonho de que lembramos ao acordar já é um triunfo: tem gente que não consegue acessar o que se passou, “seja porque não tolera lembrar, seja porque o sonho foi tão bom que resolveu tudo ali mesmo. Mas quando o sonho traz à tona questões que te perturbam, é importante que ele seja relatado e escutado. Um dispositivo analítico ou psicoterapêutico tem essa estrutura de dar espaço de fala, elaboração, recordação possível”, afirma Pereira.
Gurski acrescenta que os participantes da pesquisa falavam do efeito organizador obtido ao contar os sonhos para um outro.
“Diziam reparar em sentidos diversos, o que não ocorria quando somente sonhavam, mas, sobretudo, quando narravam o sonho a um outro.”
“Trabalhamos com a noção de que as narrativas oníricas, quando compartilhadas e endereçadas a outro, podem decantar na produção de novos sentidos. Fomos vendo que a possibilidade de o sujeito narrar-se, fazer um relato de si, também pela via do sonho, cria uma condição que permite alcançar a construção de um mínimo de sentido e compreensão ao sonhador, tornando a angústia menos aniquiladora”, conclui a pesquisadora.
No sonho aparece uma casa, um barco em cima do telhado, depois uma letra e uma figura acéfala que corre.
Visto assim, o sonho parece completamente absurdo. Esses elementos foram chamados por Freud de “conteúdo manifesto”; é aquilo que identificamos ao descrever o sonho e a narrativa.
Mas, para chegar aos conteúdos do sonho, ou seja, fazer sua interpretação, é preciso considerar o “conteúdo latente”. Esses elementos precisam ser tratados como uma espécie de pictografia, em que cada signo deve gerar associações trazidas pela linguagem:
– segundo as referências do sonhador, a casa do sonho remete a quê?
– e o barco?
– e um barco em cima de um telhado pode ser associado a quê?
– quais ideias podem ser lembradas a partir dessa letra?
– a ideia lembrada gera outra lembrança?
(…)
As associações, então, vão levando a questões íntimas da vida do sonhador, a detalhes presentes no dia anterior e a elementos que pareciam não ser tão significativos.
O conteúdo latente, portanto, aponta para o inconsciente. E para que essas questões tenham condição de vir à tona para o sonhador, o sonho tem seu conteúdo submetido a diversos processos de disfarce, condensação (várias ideias reunidas em um único elemento) e deslocamento (a atenção é desviada para o que é menos importante), entre outras edições.
É por isso que um sonho, ao ser relatado, pode parecer curto, rápido e sem sentido em sua descrição, mas possibilita associações múltiplas e infindáveis, visto que a interpretação é inesgotável.
Fonte: A interpretação dos sonhos (Freud, 1900)
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