O brasileiro está envelhecendo. O IBGE estima que, desde 2010, a cada ano há o incremento de 1 milhão de pessoas idosas na nossa população enquanto cai o número de crianças e adolescentes. Essa transição etária traz impactos crescentes à saúde.
Os determinantes sociais da saúde, somados a fatores individuais, culminam com preocupantes taxas de prevalência de doenças crônicas não transmissíveis, que correspondiam a 72% das causas de morte do Brasil, até a chegada da pandemia.
Nesse cenário, o foco em atenção primária de saúde, com uma equipe multiprofissional que acompanha a pessoa, ao longo de toda sua vida, é fundamental para buscar um envelhecimento saudável da população. Para o médico Daniel Knupp, membro do Time de Saúde da Alice e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), os principais pontos desse processo são: ressignificar o que é saúde e valorizar a autonomia dos indivíduos.
“Precisamos reaprender a olhar para o nosso próprio corpo de maneira integral e buscar autoconhecimento. Olhar para a forma que vivemos, os hábitos, nossas limitações, o que comemos, se nos exercitamos, se dormimos bem e se cuidamos da nossa saúde mental. Sem ignorar os fatores externos: onde, com quem e como vivo”, explica Knupp.
Para ele, o modelo vigente de sistema de saúde hoje não está preparado para lidar com o ônus do envelhecimento da população. Um estudo publicado na revista científica Pan American Journal of Public Health aponta que os custos totais de doenças crônicas como hipertensão, diabetes e obesidade alcançaram R$ 3,45 bilhões no SUS (Sistema Único de Saúde) somente em 2018. Essa conta só tende a crescer nas próximas décadas, se a promoção de saúde não for priorizada pelas pessoas.
Knupp argumenta que a atenção primária pode transformar essa realidade. Essa área da saúde traça a longo prazo os movimentos de cada indivíduo, prevenindo problemas e controlando condições de saúde, e identifica qual o melhor caminho para promover qualidade de vida em cada faixa etária.
O formato de atendimento, que olha a pessoa de forma mais ampla e profunda, lida com condições de saúde, fortalece laços de confiança entre profissional de saúde e a pessoa e aprimora a coordenação de cuidado.
Afinal, com esse acompanhamento tão próximo, a pessoa não tratará sintomas dentro de um pronto-socorro ou em uma jornada entre consultórios de especialistas. Ela é atendida por quem conhece o seu histórico no decorrer da vida.
Os modelos centrados na atenção primária contabilizam efeitos positivos mundo afora. Um relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) demonstrou, em 2019, antes da pandemia, que os sistemas de saúde baseados em atenção primária mantêm a população saudável com controle de doenças crônicas, além de ter potencial de tratar parte dos casos simples e diminuir o número de internações.
Um exemplo é o Canadá, que ao fortalecer a atenção primária conseguiu diminuir o número de hospitalizações por asma e diabetes não controlada já no início da década passada. O nível de admissões hospitalares por asma no país era de 16 a cada 100.000 habitantes, enquanto um terço da média dos países da OCDE tem 52 internações a cada 100.000 habitantes.
Reflexão sobre saúde e doença através dos séculos
O clássico Irmãos Karamazov, do russo Fiódor Dostoiévski, traz uma reflexão sobre entendimento de saúde em 1879, quando a obra foi publicada. A discussão centrada em doença e cura está enraizada na nossa sociedade.
Em geral, a prática há mais de 100 anos é procurar um especialista para “curar” todos os seus problemas, sublinha Knupp. A limitação é que cada especialista tende a olhar apenas para sua área.
Na visão de Knupp, o caminho é um sistema de saúde que integra os atendimentos, antes fragmentados, e que trate pessoas e não doenças. “Não podemos lidar com doenças crônicas como se fosse algo normal estar doente ou normal custear os tratamentos ao invés de promover condições melhores de saúde para a população geral.”
Ele aponta que a medicina de família e comunidade vai na contramão do modelo de saúde vigente, mecanicista e fragmentado, que já demonstrou não ser eficiente por não ser centrado no paciente e, sim, em uma dor ou sintoma isolado. É a mesma crítica feita por Dostoiévski há mais de um século e meio.
“Por isso são tão importantes a medicina de família e comunidade e a atenção primária: para buscar o bem-estar e para fazer as pessoas entenderem a saúde delas no longo prazo”, conclui.
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